LYGIA BOJUNGA NUNES
A
primeira escritora brasileira a receber o prêmio “Hans Christian Andersen”, a
maior premiação para literatura infantil, correspondente ao prêmio Nobel de Literatura,
foi Lygia Bojunga Nunes, em 1982. Como ninguém sabe esta autora dirigir-se ao
público infantil ou pré-adolescente, com obras como Os Colegas, Angélica, ou A
Bolsa Amarela. Vamos conferir esta sua habilidade lendo alguns textos:
Cap. 1 “As vontades” Paginas de 11 a 16
Eu tenho que achar um lugar pra
esconder as minhas vontades. Não digo vontade magra, pequenininha, que nem
tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de matemática, comprar um sapato
novo que eu não aguento mais o meu. Vontade assim todo o mundo pode ver, não tô
ligando a mínima. Mas as outras – as três que de repente vão crescendo e
engordando toda a vida – ah, essas eu não quero mais mostrar. De jeito nenhum.
Nem sei qual das três me enrola
mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer de uma vez e deixar de ser
criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido garoto em vez de
menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever.
Já fiz tudo pra me livrar delas.
Adiantou? Hmm! É só me distrair um pouco e uma aparece logo. Ontem mesmo eu
tava jantando e de repente pensei: puxa vida, falta tanto ano pra eu ser
grande. Pronto: a vontade de crescer desatou a engordar, tive que sair correndo
pra ninguém, ver.
Faz tempo que eu tenho vontade de ser grande e de ser homem. Mas foi só no
mês passado que a vontade de escrever deu pra crescer também. A coisa
começou assim:
Um dia fiquei pensando o que é que
eu ia ser mais tarde . Resolvi que ia
ser escritora. Então já fui fingindo que era. Só pra treinar. Comecei
escrevendo umas cartas:
Prezado
André
Ando
querendo bater papo. Mas ninguém tá a fim.
Eles
dizem que não têm tempo. Mas ficam vendotelevisão. Queria te contar minha vida, dá pé?
Um abraço da Raquel.
No outro dia quando eu fui botar
o sapato, achei lá dentro a resposta:
Dá.
André.
Parecia até telegrama, que a gente escreve bem curtinho pra não custar muito caro. Mas não liguei. Escrevi de
novo:
Querido
André
Quando
eu nasci minhas duas irmãs e meu irmão já tinham mais de
dez
anos. Fico achando que é por isso que ninguém aqui em casa tem paciência
comigo: Todo mundo já é grande há muito tempo, menos eu. Não sei quantas vezes
eu ouvi minhas irmãs dizendo: “ A Raquel nasceu de araque.
A Raquel nasceu fora de hora. A Raquel nasceu
quando a
mamãe já não tinha mais condição de ter filho”.
Tô
sobrando, André. Já nasci sobrando. É ou não é?
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- E por que é que você inventou um amigo em vez de
uma amiga?
- Porque eu acho muito melhor ser homem do que
mulher.
Ele me olhou bem sério. De
repente riu:
- No duro?
- É sim. Vocês podem um montão de coisas que a
gente não pode. Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um chefe
pras brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem chefe de família: é sempre o
homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto,
todo o mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar
pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear que fica burra: todo o
mundo tá sempre dizendo que vocês é que têm que meter as caras no estudo, que
vocês é que vão ser chefe de família, que vocês é que vão Ter responsabilidade,
que – puxa vida! – vocês é que vão Ter tudo. Até pra resolver casamento – então
eu não vejo? – a gente fica esperando vocês decidirem. A gente tá sempre
esperando vocês resolverem as coisas pra gente. Você quer saber de uma coisa?
Eu acho fogo ter nascido menina.”
Cap. 2. “A bolsa amarela” páginas. 25 a 29
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Eu fico boba de ver como a tia
Brunilda compra roupa. Compra e enjoa. Enjoa tudo: vestido, bolsa, sapato,
blusa. Usa três, quatro vezes e pronto: enjoa. Outro dia eu perguntei:
- Se ela enjoa tão depressa, pra que que ela
compra tanto? É pra poder enjoar mais?
Ninguém me deu bola. Fiquei
pensando no tio Júlio. Meu pai diz que ele dá um duro danado pra ganhar o
dinheirão que ele ganha. Se eu fosse ele, eu ficava pra morrer de ver a tia Brunilda gastar o dinheiro numas coisas que ela enjoa logo. Mas ele não fica.
Eu acho isso tão esquisito! Outra coisa um bocado esquisita é que se ele
reclama, ela diz logo: “ Vou arranjar um emprego” . Aí ele fala: “De jeito
nenhum!” E dá mais dinheiro. Pra ela comprar mais. E pra continuar enjoando.
Vou ver se um dia eu entendo essa jogada.(...............)
- Toma Raquel, fica pra você.
Era a bolsa.(..............)
A bolsa tinha sete filhos! (Eu
sempre achei que bolso de bolsa é filho da bolsa) E os sete moravam assim:
Em cima, um grandão de cada lado,
os dois com zipe; abri-fechei, abri-fechei, abri-fechei, os dois funcionando
bem que só vendo. Logo embaixo tinha mais dois bolsos menores, que fechavam com
botão. Num dos lados tinha um outro – tão magro e tão comprido que eu fiquei
pensando o que é que eu podia guardar ali dentro ( um guarda-chuva? Um martelo?
Um cabide em pé?). no outro lado tinha um bolso pequeno, feito de fazenda
franzidinha, que esticou todo quando eu botei a mão dentro dele; botei as duas
mãos: esticou ainda mais; era um bolso com mania de sanfona, como eu iria dar
coisa pra ele guardar! E por último tinha um bem pequenininho, que eu logo
achei que era o bebê da bolsa. .
Comecei a pensar em tudo que eu
ia esconder na bolsa amarela.”
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“Cheguei em casa e arrumei tudo
que eu queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que eu vinha juntando e botei
no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando uma coisa bem
magra pra esconder lá dentro. No bolso bebê eu guardei um alfinete de fralda
que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal
da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas que eu andava
pensando. Abri um zipe; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri
outro zipe; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro
bolso de botão espremi a vontade de ter nascido garoto ( ela andava muito
grande, foi um custo pro botão fechar).
Pronto!” a arrumação tinha
ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia
ver a cara delas.”
SUGESTÕES DE ATIVIDADES COM ALUNOS
1. Comente a diferença de discurso entre meninos e meninas.
2. Qual a significação da bolsa amarela, seus bolsos ( ou filhos) e qual sua serventia?
3. Teria a bolsa amarela alguma significação psicológica?
4. Comentem as vontades de Raquel. Porque ele quer ser homem, adulta e escritora? Em cada uma destas vontades esconde-se algum aspecto psicológico? Seriam estas vontades comuns aos adolescentes, ou pré-adolescentes?
5. O texto do capítulo 3, "O Galo" contém uma ideias de machismo, ou contra o machismo ? Comente o aspecto de crítica social existente.
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