sábado, 24 de maio de 2014

A GATA DE ROUPÃO COR DE ROSA



A GATA DE ROUPÃO COR DE ROSA

 

Martha Lívia Volpe Orlov

 

Dedico este livrinho à minha neta Giulia, meu netinho Thomás. e aos meu sobrinhos netos: Daniel, Athos e Tim.

 

À memória das minhas gatinhas

Miloca  e  Maysa

 

A GATA DE ROUPÃO COR DE ROSA

  

Miloca é uma gatinha muito vaidosa, vive em um apartamento de luxo com sua dona, uma senhora idosa e viúva.

 
Todos os dias alisa que alisa carinhosamente seu pelo sedoso, lambe que lambe todo seu corpo, até o rabinho. Passa as patas na cara e deixa bem lânguidos seus olhinhos, verdes com seus lindos cílios longos e curvos.

 
E a cara de “vamp” da Miloca?

 
Depois de toda esta toalete Miloca veste seu roupão de seda cor de rosa enfeitado de rendinhas e se põe à janela esperando as novidades e, quem sabe apareça algum namorado. Mas qual, presa como ela sempre está, cadê namorado...


As novidades aparecem: está gritaria tremenda na rua, gritaria, oba, gritaria de gatos.

 
- O que será que está acontecendo, ai, se eu pudesse sair! Um dia eu fugi, mas foi muito difícil voltar, eu me perdi, fiquei toda suja, minha dona brigou muito comigo...

 
A gritaria continua e Miloca está bastante assanhada pra ver o que acontece naquela rua na qual ela nunca passeia, corre ou bisbilhota. Minutos e minutos, escutando e ficando cada vez mais curiosa.

 
- A campainha está tocando será minha dona, é ela e a vovó Mariana, vou correndo ver se ganho alguma coisa de comer, afinal estou toda bonita, limpinha, vestida com meu roupão de seda que Dona Alice, (ela é minha dona) gosta.

 
- Lá vou eu..... -Já entraram e a porta ficou meio aberta, é hoje...

 
Miloca desabou pela escadaria do prédio, morava no segundo andar, e conseguiu chegar à rua.

 
Mas a gritaria de gatos já havia cessado e Miloca ficou sem saber o que fazer naquela no movimento daquela avenida . De qualquer modo resolveu dar uma voltinha, uma pequena voltinha .....

Reconhecimento do terreno.....


Inesperadamente uma coisa muito estranha caiu na frente dela:

 
- Que será isto, amarelo, grande, gordo, com olhos arregalados, lábios exagerados, não parece gente nem bicho, vou é fugir .... é um monstro, igualzinho aqueles que já vi pela televisão.

 
Mas o monstro veio se arrastando atrás dela, ela não conseguia correr muito por causa do roupão cor de rosa que se enroscava em cada arbusto da calçada.

 
Miloca foi ficando muito, muito assustada, e o monstro sempre correndo atrás dela. Por sorte apareceram gatos de todos os lados, que perceberam a aflição dela.

 
E o monstro sempre atrás dela, quando parou , NOSSA o monstro também parou!!

 
- Que coisa mais esquisita você traz sempre arrastando , disse um grande gato preto, que se chamava Carvão. 

 
- Eu não trago nada, este monstro encarnou em mim, não fala nada, mas me persegue o tempo todo, disse Miloca, tremendo de medo.

 
- Vamos ajudá-la a se libertar dessa coisa, disse um gatinho mais magro, o Biscuí, com cara de fome, todo cinzento.

 
- Isto é que não, replicou Pipoca, uma gata amarela ali do lado. Ela não é da nossa turma, não é do nosso jeito, olha pra ela toda amarrada neste pano cor de rosa. Ela é que se vire, não pertence ao nosso meio. 

- Acho que você está se esquecendo que chegou aqui quase igualzinha e ela. Era muito fricoteira e estava fugindo de casa...

 
- Isto são águas passadas, respondeu Pipoca. Agora eu não sou assim...

 
- Mas quando chegou era e ninguém da turma pediu para ir embora, só porque era diferente. E o gato Melado, então, que não tem rabo, e a gatinha Mimi, branquela, já ouvi os humanos falando que ela, como é mesmo,é albina. Ninguém os mandou embora por serem diferentes de nós.

 
- Ajudem-me, por favor, gritou Miloca, vocês discutindo e o monstro aqui do meu lado me encarando, eu morta de medo, sem saber o que vai acontecer comigo...

- É verdade, falou o gatinho cinzento, o Biscuí, a gatinha sofrendo e vocês discutindo por nada, só implicâncias...

 
- Nossa, nos distraímos com coisinhas sem importância e a gatinha muito aflita pediu nossa ajuda. Como é mesmo que você se chama?


- Me chamo Miloca, mas por favor me AJUDEMMMM.....

 
- Vamos atacar o monstro amarelo, todos juntos, ele não vai poder com todos nós juntos.....  Vamos, vamos, atacar...... 1,2,3,    e.....Biscuí, Mimi, Pipoca, Melado e o gato preto, o Carvão, atacaram o monstro, que nem piou, na primeira unhada desabou fazendo assim: 

 
Fiiiiiiuuuuuummmmm......

 
Desabou como um monte em cima da calçada: afinal era só um boneco de plástico inflável.

Todos desabaram a rir, quando perceberam que tiveram medo de plástico pintado, com cara arreganhada e assustadora, mas cheio de ar:


- Há, há,há,há,ha, cairam todos na gargalhada.


- Mas como ele corria atrás de você.....perguntou Biscuí.
 

Todos foram verificar como era isto, daquele boneco correr atrás de Miloca:
 

- Olhem, verificou Mimi, há um cordão amarrado no boneco e enganchado no roupão cor de rosa.

- E me deu um susto danado, replicou a gatinha. 

 
Rapidamente os gatos desengancharam  o cordão que estava preso no roupão  de Miloca


- Bem, você, e então me deve um presente, acrescentou Mimi, fui eu quem resolveu este caso .

 - Como assim, todos me ajudaram, não só você, Mimi, o que você quer de mim.

 
- Eu quero o roupão cor de rosa.

 
- Isso é que não, disse Pipoca, eu também quero este roupão.

 
- Não posso dar, é presente da minha dona e ela fica triste se eu o perder.

 
- Mas nós QUEREMOS, QUEREMOS e está acabado, acrescentaram Mimi e Pipoca.

 
- Parado aí, chegou berrando o Carvão. Ninguém tem o direito de exigir nada. Ajudamos a Miloca como ajudamos vocês, quando chegaram.

 

- E eram bem diferentes de nós, disse Carvão, assim como Melado. Aqui nos aceitamos como somos.
 

- Só procuramos conviver em harmonia, acrescentou Melado.
 

- Então só tenho a agradecer a vocês todos e espero que fiquemos amigos, disse Miloca.

 
- Ora Miloca, você já faz parte da nossa turma, é nossa amiga, não é não, pessoal?

 
- É. Responderam os gatos, apesar de Mimi e Pipoca, invejosas,não estarem muito contentes, não podiam discordar. Carvão comandava o bandinho e sempre procurava que se dessem bem.

 
- Tenho de voltar para casa, minha dona sofre muito sem mim, ela é idosa e eu faço muita companhia para ela, mas quando der, dou uma escapada para ver vocês, agora meus amigos.

 
- É isso aí, acrescentou Melado, nós bichinhos, somos de utilidade para crianças e idosos, até para alguns adultos...  Aqueles que nos tratam bem. Pena que ninguém ainda me adotou...

 
Nem a mim, responderam em coro os gatinhos!

 
- Mas, não percam a esperança, disse MiLoca. Se eu souber de alguém dou um jeito para que os encontre. Tchau, tchau, queridos amigos.

 
Assim Miloca conseguiu fazer amigos :Carvão, Melado, Pipoca e Mimi.  O Biscuí, o cinzentinho,bem, parece que Miloca também arranjou um namorado!

 
Aprendeu que podia contar com eles porque se respeitavam e respeitavam quem era diferente...

terça-feira, 20 de maio de 2014

AUTORAS PREMIADAS :LYGIA BOJUNGA NUNES, ANA MARIA MACHADO E RUTH ROCHA


TRÊS GRANDES ESCRITORAS NACIONAIS: Ruth Rocha, Lygia Bojunga Nunes e Ana Maria Machado.

 O objetivo desta página é apresentar pequenos textos destas três magníficas autoras nacionais; muito pode-se comentar sobre elas, o que faremos posteriormente.





DUAS FÁBULAS POLÍTICAS DE RUTH ROCHA

 Ruth Rocha tem a incrível capacidade de escrever sobre temas aparentemente complexos, da forma mais simples, sob a forma de parábolas. Duas parábolas sobre a insensatez da guerra e a educação para a paz tomam forma respectivamente nas obras: Dois idiotas sentados, cada qual no seu barril e Enquanto o mundo pega fogo, ambos editados pela Nova Fronteira do Rio de Janeiro, na década de oitenta, mas atualíssimos nos dias de hoje.        


Dois idiotas sentados, cada qual no seu barril alterna prosa e versos. Foi ilustrado por Jaguar e esta ilustração complementa o que o texto não diz: a guerra fria que por décadas sustentaram entre si os Estados Unidos da América e a República Socialista Soviética, ou seja a Rússia. Os chapéus dos dois personagens denunciam sua origem: a cartola de Tio Sam e o boné de lã, típico da Rússia; ambos estão com uma vela acesa, sentados em cima de barris de pólvora furados, vazando seu conteúdo.

 As estrofes de versos são de tamanhos desiguais, seis, oito, dez versos, etc. O início destas estrofes são de versos recorrentes, com pequenas variações, acrescentando mais informações sobre os personagens: inicia-se assim a narrativa:


Dois idiotas sentados:
O Teimosinho e o Mandão;
Muito bem acomodados,
Com suas velas na mão.
Cada qual no seu barril
De pólvora recheado,
Começam, num tom gentil,
Cada qual mais educado...  

Outros versos recorrentes:

“ Dois idiotas sentados,
agora muito espantados,....”

 “Dois idiotas muito tolos,
com suas velas na mão.”

“Dois idiotas sentados
 etcétera e tal...”


 É previsível o final desta estória, não é?

“Mas de repente, que coisa!
Deu grande espirro o Mandão!

O Teimoso leva um susto,
Levanta de supetão!
A vela, que estava acesa,
Dá um pulo de sua mão...
E cai no barril do outro,
Ouve-se grande explosão!”

C A T R A P U M !

.........................................

Lá se vão os idiotas:
Era uma vez um teimoso,
Era uma vez um mandão...”


                                                                       *      *     *     *     *


O livro Enquanto o mundo pega fogo traz desenhos de Walter Ono. Já a capa e o título interno estão envoltos em chamas. A obra compõe-se de três pequenas narrativas: a primeira é a que dá nome ao livro “ Enquanto o mundo pega fogo”, seguida de “O homem e a galinha”  que reconta a fábula da “Galinha dos ovos de ouro” de forma diferente. A terceira narrativa é “Pra vencer certas pessoas” e conta a estória de um vaqueiro matreiro, Pedro,  que se faz passar por frei Damião e responde ao rei, com malícia e sabedoria, perguntas que ninguém respondia.


“Enquanto o mundo pega fogo”, é a primeira narrativa e tem dois personagens, dois compadres, Zé e Mané, muito amigos, sempre juntos, que, ganhando um dinheirinho compram uma terrinha e resolvem separar a parte de terreno de cada um com uma cerca. Aí começam as brigas, seja porque uma galinha botou ovo no terreno do outro, ou uma mangueira estendeu seus galhos no terreno oposto. Resultado: ficam inimigos; um rojão propositadamente acendido por Zé, para acordar Mané, põe fogo na casa deste..

Enquanto discutem inutilmente o fogo vai se alastrando e consome tudo, nos dois terrenos. Quando tudo vira carvão, concordam eles que tem de limpar tudo, juntos!

 Que tal? Gostaram? Espero que leiam estas pequenas obras primas de literatura infantil, onde Ruth Rocha, partindo de coisas concretas consegue levar as crianças a conclusões sobre a inutilidade de querelas, tão infantis, que levam a conseqüências tão sérias!   


********* 

LYGIA BOJUNGA NUNES

Lygia Bojunga Nunes é detentora de dois dos maiores prêmios internacionais em literatura infantil: O "Hans Christian Andersen", equivalente ao "Nobel" em literatura adulta e o "Astrid Lindgren". da Suécia. Uma de suas obras, A Bolsa Amarela, apresenta de maneira simples, descomplicada  críticas à sociedade contemporânea, critérios de valor  a serem revistos. O texto abaixo apresenta a visão de uma criança ao consumismo desenfreado dos adultos.          
                    
Cap. 2. “A bolsa amarela”  páginas. 25 a 29

........................................

Eu fico boba de ver como a tia Brunilda compra roupa. Compra e enjoa. Enjoa tudo: vestido, bolsa, sapato, blusa. Usa três, quatro vezes e pronto: enjoa. Outro dia eu perguntei:
-          Se ela enjoa tão depressa, pra que que ela compra tanto? É pra poder enjoar mais?
Ninguém me deu bola. Fiquei pensando no tio Júlio. Meu pai diz que ele dá um duro danado pra ganhar o dinheirão que ele ganha. Se eu fosse ele, eu ficava pra morrer de ver a tias Brunilda gastar o dinheiro numas coisas que ela enjoa logo. Mas ele não fica. Eu acho isso tão esquisito! Outra coisa um bocado esquisita é que se ele reclama, ela diz logo: “ Vou arranjar um emprego” . Aí ele fala: “De jeito nenhum!” E dá mais dinheiro. Pra ela comprar mais. E pra continuar enjoando. Vou ver se um dia eu entendo essa jogada.(...............) 
-          Toma Raquel, fica pra você.
Era a bolsa.(..............)
A bolsa tinha sete filhos!( Eu sempre achei que bolsa de bolsa é filho da bolsa) E os sete moravam assim:
Em cima, um grandão de cada lado, os dois com zipe; abri-fechei, abri-fechei, abri-fechei, os dois funcionando bem que só vendo. Logo embaixo tinha mais dois bolsos menores, que fechavam com botão. Num dos lados tinha um outro – tão magro e tão comprido que eu fiquei pensando o que é que eu podia guardar ali dentro ( um guarda-chuva? Um martelo? Um cabide em pé?). no outro lado tinha um bolso pequeno, feito de fazenda franzidinha, que esticou todo quando eu botei a mão dentro dele; botei as duas mãos: esticou ainda mais; era um bolso com mania de sanfona, como eu ria dar coisa pra ele guardar! E por último tinha um bem pequenininho, que eu logo achei que era o bebê da bolsa. .
Comecei a pensar em tudo que eu ia esconder na bolsa amarela.”
......................................................................................................................

“Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas que eu andava pensando. Abri um zipe; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zipe; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão espremi a vontade de Ter nascido garoto ( ela andava muito grande, foi um custo pro botão fechar).
Pronto!” a arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara delas.”



*     *     *     *     *


ANA MARIA MACHADO



A obra  Bisa Bia, Bisa Bel, foi merecedora dos maiores prêmios brasileiros e Ana Maria Machado é a Segunda  autora infanto-juvenil brasileira, a receber o prêmiuo “Hans Christian Andersen”, no ano 2000.  Autora de obras como Bento-que-bento-é-o-frade, História meio ao contrário, Raul da Ferrugem Azul, O gato do mato e o cachorro do morro, Era uma vez um tirano, O menino que espiava para dentro, dentro de dezenas de outras obras, onde a temática´de interesse infantil ou pré-adolescente está recheada de elementos sociais, como a distribuição dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres, preconceitos, etc.


TEXTOS PARA LEITURA


MACHADO, Ana Maria – Bisa,Bia, Bisa Bel , Rio de Janeiro, Ed. Salamandra, 11ª edição, 1985.

Capítulo IV  “As conversas de antigamente” – páginas de 23 a 26.


“Toda essa história de móveis é muito engraçada. Bisa Bia não conhecia armário embutido, já imaginou? Levou um susto a primeira vez que me viu abrir um, pensou que era uma parede que se mexia, que nem uma passa secreta ou a caverna de Ali Babá. Disse que no tempo dela não tinha nada disso. Também não tinha televisão, nem sofá-cama, nem liquidificador, nem bancada de pia no banheiro, nem almofadão da gente sentar no chão, nem uma porção de coisas assim. Mas também, ela fala de uns outros móveis bem diferentes, de nomes esquisitos. Na sala tinha um tal de bufê ou etagér(............) No quarto, a cama dela tinha mosquiteiro. Eu pensei que era uma criação particular de mosquitos, estava achando uma idéia incrível Ter mosquito ensinado para zumbir a música que a gente quisesse e morder quem a gente não gostasse, mas aí ela explicou que era justamente o contrário ......  (........). Outra coisa que ela contou que tinha no quarto era penteadeira, cheia de vidros de perfume em cima, enfeites de louça ( vê que nome engraçado, chamava de bibelô e ela diz que eram tão bonitinhos que eu até pareço um bibelô). Penteadeira eu logo vi para que servia:

-          Ah, Bisa Bia, isso eu sei, é para olhar no espelho e se pentear, não é?

-          E também para se fazer o toucador...

-          O que? Toucador? Ajeitar a touca na cabeça?

Ela riu e explicou que não. Era se arrumar, se pintar, se enfeitar, ficar bonitinha, como a minha mãe se ajeita no espelho do banheiro. Aí Bisa Bia explicou que no tempo dela banheiro era muito diferente. A gente lavava o rosto no quarto mesmo, e sempre tinha uma mesinha ou um móvel com uma bacia e um jarro d’água, com uma toalha limpinha do lado.

-          E pra fazer xixi?

-          Tinha uma casinha lá fora...

-          E se a gente acordasse de noite com vontade?

-          Tinha um urinol... – ela explicava, sempre com paciência.

-          O que?

-          Um urinol, penico. Ficava embaixo da cama, ou guardado numa portinha especial do criado-mudo.

-          Criado-mudo? Você não disse outro dia que criada era empregada? Puxa, vocês gostavam mesmo de explorar os outros, hem, tratar todo mundo feito escravo... pra que é que precisava de um coitado de um mudo pra guarda penico?

-          Não, Isabel. Criado-mudo era uma espécie de mesinha do lado da cama, um armário pequeno...

-          Ah, mesinha de cabeceira... (........)

(............) No Domingo em que eu disse que ia comer um cachorro-quente e tomar uma vaca-preta, foi um deus-nos-acuda. Foi mesmo:

-          Deus nos acuda, minha filha! Isso lá é coisa que se coma? Coitadinho do cachorro...

O trabalho que deu para explicar, você nem sabe. Para começar, quando eu disse que era um lanche, levamos um tempão até entender que era o que ela chamava de merenda... Sanduíche era outra coisa que ela nem sabia o que era, mas deu para explicar que era salsicha com pão. Mas, vaca-preta? Coca-cola batida com sorvete? Quem disse que ela sabia o que era coca-cola? Ou qualquer refrigerante? Nada disso tinha no tempo dela. E depois, quando ela começou a me dizer o que costumava Ter na merenda ou na sobremesa da casa dela, foi a minha vez de arregalar os olhos e ficar horrorizada, enquanto ela suspirava de saudade:

-          Baba de moça, Isabel, uma delícia!

-          Ai, que nojo, Bisa, como é que você tinha coragem?   

Ela continuava:

-          Papo de anjo, também uma gostosura...

-          Uma maldade, isto sim. Logo de anjinho... Ainda se fosse de galinha...

Mas aí ela falou em pé-de-moleque e olho-de-sogra e suspiro, e eu fui descobrindo que tudo era nome de doce, já pensou? Ela achando que eu comia ensopadinho de cachorro e eu achando que ela lambia cuspe de gente, a tal baba de moça. A gente fala a mesma língua, mas tem horas que nem parece, porque tem umas coisas que mudaram muito, fica até difícil entender...”

                                                      
                                                         *********************

LYGIA BOJUNGA NUNES pequenos textos e sugestões de atividades com alunos.


LYGIA BOJUNGA NUNES


            A primeira escritora brasileira a receber o prêmio “Hans Christian Andersen”, a maior premiação para literatura infantil, correspondente ao prêmio Nobel de Literatura, foi Lygia Bojunga Nunes, em 1982. Como ninguém sabe esta autora dirigir-se ao público infantil ou pré-adolescente, com obras como Os Colegas, Angélica, ou A Bolsa Amarela. Vamos conferir esta sua habilidade lendo alguns textos:

 NUNES, Lygia Bojunga – A Bolsa Amarela – Rio de Janeiro, Editora Agir, 1986, 12ª edição, ilustrações Marie Louise Nery.

Cap. 1  “As vontades”    Paginas de 11 a 16

Eu tenho que achar um lugar pra esconder as minhas vontades. Não digo vontade magra, pequenininha, que nem tomar sorvete a toda hora, dar sumiço da aula de matemática, comprar um sapato novo que eu não aguento mais o meu. Vontade assim todo o mundo pode ver, não tô ligando a mínima. Mas as outras – as três que de repente vão crescendo e engordando toda a vida – ah, essas eu não quero mais mostrar. De jeito nenhum.

Nem sei qual das três me enrola mais. Às vezes acho que é a vontade de crescer de uma vez e deixar de ser criança. Outra hora acho que é a vontade de ter nascido garoto em vez de menina. Mas hoje tô achando que é a vontade de escrever.

Já fiz tudo pra me livrar delas. Adiantou? Hmm! É só me distrair um pouco e uma aparece logo. Ontem mesmo eu tava jantando e de repente pensei: puxa vida, falta tanto ano pra eu ser grande. Pronto: a vontade de crescer desatou a engordar, tive que sair correndo pra ninguém, ver.

Faz tempo que eu tenho vontade de ser grande e de ser homem. Mas foi só no  mês passado que a vontade de escrever deu pra crescer também. A coisa começou assim:

Um dia fiquei pensando o que é que eu ia ser mais tarde  . Resolvi que ia ser escritora. Então já fui fingindo que era. Só pra treinar. Comecei escrevendo umas cartas:

                                   Prezado André

                                   Ando querendo bater papo. Mas ninguém tá a fim.
                                   Eles dizem que não têm tempo. Mas ficam vendo
                                   televisão. Queria te contar minha vida, dá pé?
                                   Um abraço da Raquel.

No outro dia quando eu fui botar o sapato, achei lá dentro a resposta:

                                   Dá.
                                   André.

Parecia até telegrama, que a gente escreve bem curtinho pra não custar muito caro. Mas não liguei. Escrevi de novo:

                                   Querido André

                                Quando eu nasci minhas duas irmãs e meu irmão já tinham mais de
dez anos. Fico achando que é por isso que ninguém aqui em casa tem paciência comigo: Todo mundo já é grande há muito tempo, menos eu. Não sei quantas vezes eu ouvi minhas irmãs dizendo: “ A Raquel nasceu de araque. A Raquel nasceu fora de hora. A Raquel nasceu
                                quando a mamãe já não tinha mais condição de ter filho”.
                                Tô sobrando, André. Já nasci sobrando. É ou não é?

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-   E por que é que você inventou um amigo em vez de uma amiga?

-   Porque eu acho muito melhor ser homem do que mulher.

Ele me olhou bem sério. De repente riu:

-   No duro?

-   É sim. Vocês podem um montão de coisas que a gente não pode. Olha: lá na escola, quando a gente tem que escolher um chefe pras brincadeiras, ele sempre é um garoto. Que nem chefe de família: é sempre o homem também. Se eu quero jogar uma pelada, que é o tipo do jogo que eu gosto, todo o mundo faz pouco de mim e diz que é coisa pra homem; se eu quero soltar pipa, dizem logo a mesma coisa. É só a gente bobear que fica burra: todo o mundo tá sempre dizendo que vocês é que têm que meter as caras no estudo, que vocês é que vão ser chefe de família, que vocês é que vão Ter responsabilidade, que – puxa vida! – vocês é que vão Ter tudo. Até pra resolver casamento – então eu não vejo? – a gente fica esperando vocês decidirem. A gente tá sempre esperando vocês resolverem as coisas pra gente. Você quer saber de uma coisa? Eu acho fogo ter nascido menina.” 


Cap. 2. “A bolsa amarela”  páginas. 25 a 29

........................................

Eu fico boba de ver como a tia Brunilda compra roupa. Compra e enjoa. Enjoa tudo: vestido, bolsa, sapato, blusa. Usa três, quatro vezes e pronto: enjoa. Outro dia eu perguntei:

-    Se ela enjoa tão depressa, pra que que ela compra tanto? É pra poder enjoar mais?

Ninguém me deu bola. Fiquei pensando no tio Júlio. Meu pai diz que ele dá um duro danado pra ganhar o dinheirão que ele ganha. Se eu fosse ele, eu ficava pra morrer de ver a tia Brunilda gastar o dinheiro numas coisas que ela enjoa logo. Mas ele não fica. Eu acho isso tão esquisito! Outra coisa um bocado esquisita é que se ele reclama, ela diz logo: “ Vou arranjar um emprego” . Aí ele fala: “De jeito nenhum!” E dá mais dinheiro. Pra ela comprar mais. E pra continuar enjoando. Vou ver se um dia eu entendo essa jogada.(...............) 

-   Toma Raquel, fica pra você.

Era a bolsa.(..............)

A bolsa tinha sete filhos! (Eu sempre achei que bolso de bolsa é filho da bolsa) E os sete moravam assim:

Em cima, um grandão de cada lado, os dois com zipe; abri-fechei, abri-fechei, abri-fechei, os dois funcionando bem que só vendo. Logo embaixo tinha mais dois bolsos menores, que fechavam com botão. Num dos lados tinha um outro – tão magro e tão comprido que eu fiquei pensando o que é que eu podia guardar ali dentro ( um guarda-chuva? Um martelo? Um cabide em pé?). no outro lado tinha um bolso pequeno, feito de fazenda franzidinha, que esticou todo quando eu botei a mão dentro dele; botei as duas mãos: esticou ainda mais; era um bolso com mania de sanfona, como eu iria dar coisa pra ele guardar! E por último tinha um bem pequenininho, que eu logo achei que era o bebê da bolsa. .

Comecei a pensar em tudo que eu ia esconder na bolsa amarela.”

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“Cheguei em casa e arrumei tudo que eu queria na bolsa amarela. Peguei os nomes que eu vinha juntando e botei no bolso sanfona. O bolso comprido eu deixei vazio, esperando uma coisa bem magra pra esconder lá dentro. No bolso bebê eu guardei um alfinete de fralda que eu tinha achado na rua, e no bolso de botão escondi uns retratos do quintal da minha casa, uns desenhos que eu tinha feito, e umas coisas que eu andava pensando. Abri um zipe; escondi fundo minha vontade de crescer; fechei. Abri outro zipe; escondi mais fundo minha vontade de escrever; fechei. No outro bolso de botão espremi a vontade de ter nascido garoto ( ela andava muito grande, foi um custo pro botão fechar).

Pronto!” a arrumação tinha ficado legal. Minhas vontades tavam presas na bolsa amarela, ninguém mais ia ver a cara delas.”

 Cap. 3 – O galo – p. 35

 “.........Acabei resolvendo que ia lutar pelas minhas idéias(..........///......) Então eu chamei as minhas quinze galinhas e pedi, por favor, pra elas me ajudarem. Expliquei que vivia muito cansado de ter que mandar e desmandar nelas todas noite e dia. Mas elas falaram: “Você é o nosso dono. Você é que resolve tudo pra gente.” Sabe, Raquel, elas não botavam um ovo, não davam uma ciscadinha, não faziam coisa nenhuma, sem vir me perguntar: ”Eu posso? Você deixa?” e se eu respondia: “Ora, minha filha, o ovo é seu, a vida é sua, resolve como você achar melhor”, elas desatavam a chorar, não queriam mais comer, emagreciam, até morriam. Elas achavam que era melhor ter um dono mandando o dia inteiro: faz isso! Faz aquilo! Bota um ovo! Pega uma minhoca! Do que ter que resolver qualquer coisa. Diziam que pensar dá muito trabalho.”

segunda-feira, 19 de maio de 2014

NOSSO OBJETIVO


NOSSO OBJETIVO

Amamos nossas crianças. Queremos o melhor para elas e, neste sentido, valorizamos a leitura.

Durante décadas nos dedicamos ao magistério , do nível fundamental ao superior, com disciplinas relacionadas às letras, sobretudo Português e Literatura Brasileira, Teoria da Literatura e Literatura Infanto-juvenil.

Não pretendemos nos ater apenas a textos infantis, apesar da denominação do blog, visto que temos esperança de conquistar leitores de todas idades, pais, avôs, professores. Poderemos postar textos teóricos, textos sobre linguagem, sobre o papel da ilustração, ou seja diversos códigos, diversas linguagens.

Confessamos aqui uma tristeza que sentimos, quando constatamos que a literatura nacional, sobretudo a infanto-juvenil, quase não é citada nos livros mais vendidos, cuja lista consta quase 100% de autores estrangeiros. Entretanto temos autores da maior envergadura, detentores de prêmios internacionais como Lygia Bojunga Nunes, ganhadora do prêmio "Hans Christian Andersen", o equivalente ao prêmio Nobel em literatura infantil, além do primeiro "Astrid Lindberg", da Suécia, e pasmem, ela escreve em Português.

Também Ana Maria Machado recebeu o "Hans Christian Andersen", além de autores maravilhosos como Ruth Rocha, Maurício de Souza e tantos outros que preencheríamos esta página apenas com seus nomes, mas oportunamente serão fruto da nossa atenção.

Vamos inserir gravuras, ilustrações retiradas da Internet, e nem sempre conseguiremos identificar a autoria, apenas para deixar nosso texto um pouco mais atrativo, e, como não temos objetivos comerciais, pedimos que nos perdoem por utilizar sua arte, mas, se identificados, estaremos divulgando sua produção
.

Não temos pretensão alguma, não pretendemos ser originais,  apenas fazer algo de que gostamos e gostaríamos de dar utilidade a aspectos que merecem nossa atenção, nosso estudo, nosso amor.  
SEJAM BENVINDOS