O HUMOR NA LITERATURA INFANTIL
Ana Maria Machado é, sem dúvida das melhores autoras de Literatura infantil, e especialmente para pré-adolescentes. Com humor, com leveza, ensina; neste texto a exploração linguística evidencia os aspectos evolutivos da língua em seus significantes e significados
LEIA O TEXTO SEGUINTE :
“ Toda essa história de móveis é
muito engraçada. Bisa Bia não conhecia armário embutido, já imaginou? Levou um
susto a primeira vez que me viu abrir um, pensou que era uma parede que se
mexia, que nem uma passa secreta ou a caverna de Ali Babá. Disse que no tempo
dela não tinha nada disso. Também não tinha televisão, nem sofá-cama, nem
liquidificador, nem bancada de pia no banheiro, nem almofadão da gente sentar
no chão, nem uma porção de coisas assim. Mas também, ela fala de uns outros
móveis bem diferentes, de nomes esquisitos. Na sala tinha um tal de bufê ou
etagér(............) No quarto, a cama dela tinha mosquiteiro. Eu pensei que
era uma criação particular de mosquitos, estava achando uma idéia incrível Ter
mosquito ensinado para zumbir a música que a gente quisesse e morder quem a
gente não gostasse, mas aí ela
explicou que era justamente o contrário ......
(........). Outra coisa que ela contou que tinha no quarto era
penteadeira, cheia de vidros de perfume em cima, enfeites de louça ( vê que
nome engraçado, chamava de bibelô e ela diz que eram tão bonitinhos que eu até
pareço um bibelô). Penteadeira eu logo vi para que servia:
-
Ah, Bisa Bia, isso eu sei, é para olhar no espelho e se
pentear, não é?
-
E também para se fazer o toucador...
-
O que? Toucador? Ajeitar a touca na cabeça?
Ela riu e explicou que não. Era
se arrumar, se pintar, se enfeitar, ficar bonitinha, como a minha mãe se ajeita
no espelho do banheiro. Aí Bisa Bia explicou que no tempo dela banheiro era
muito diferente. A gente lavava o rosto no quarto mesmo, e sempre tinha uma
mesinha ou um móvel com uma bacia e um jarro d’água, com uma toalha limpinha do
lado.
-
E pra fazer xixi?
-
Tinha uma casinha lá fora...
-
E se a gente acordasse de noite com vontade?
-
Tinha um urinol... – ela explicava, sempre com
paciência.
-
O que?
-
Um urinol, penico. Ficava embaixo da cama, ou guardado
numa portinha especial do criado-mudo.
-
Criado-mudo? Você não disse outro dia que criada era
empregada? Puxa, vocês gostavam mesmo de explorar os outros, hem, tratar todo
mundo feito escravo... pra que é que precisava de um coitado de um mudo pra
guarda penico?
-
Não, Isabel. Criado-mudo era uma espécie de mesinha do
lado da cama, um armário pequeno...
-
Ah, mesinha de cabeceira... (........)
............No Domingo em que eu
disse que ia comer um cachorro-quente e tomar uma vaca-preta, foi um
deus-nos-acuda. Foi mesmo:
-
Deus nos acuda, minha filha! Isso lá é coisa que se
coma? Coitadinho do cachorro...
O trabalho que deu para
explicar, você nem sabe. Para começar, quando eu disse que era um lanche,
levamos um tempão até entender que era o que ela chamava de merenda...
Sanduíche era outra coisa que ela nem sabia o que era, mas deu para explicar
que era salsicha com pão. Mas, vaca-preta? Coca-cola batida com sorvete? Quem
disse que ela sabia o que era coca-cola? Ou qualquer refrigerante? Nada disso
tinha no tempo dela. E depois, quando ela começou a me dizer o que costumava
Ter na merenda ou na sobremesa da casa dela, foi a minha vez de arregalar os
olhos e ficar horrorizada, enquanto ela suspirava de saudade:
-
Baba de moça, Isabel, uma delícia!
-
Ai, que nojo, Bisa, como é que você tinha coragem?
Ela continuava:
-
Papo de anjo, também uma gostosura...
-
Uma maldade, isto sim. Logo de anjinho... Ainda se
fosse de galinha...
Mas aí ela falou em
pé-de-moleque e olho-de-sogra e suspiro, e eu fui descobrindo que tudo era nome
de doce, já pensou? Ela achando que eu comia ensopadinho de cachorro e eu
achando que ela lambia cuspe de gente, a tal baba de moça. A gente fala a mesma
língua, mas tem horas que nem parece, porque tem umas coisas que mudaram muito,
fica até difícil entender...
(MACHADO, Ana aria – Bisa,Bia, Bisa Bel , Rio de Janeiro,
Ed. Salamandra, 11ª edição, 1985, p. 23 a 26)
Que tal?
Gostou ? a autora soube fazer um texto humorístico, em linguagem coloquial, bem ao alcance das
crianças, e que leva também a diversas outras cogitações.
A obra acima citada,
Bisa Bia, Bisa Bel, foi merecedora
dos maiores prêmios brasileiros e
Ana Maria Machado é autora infanto-juvenil brasileira, de obras como Bento-que-bento-é-o-frade, História meio ao
contrário, Raul da Ferrugem Azul, O gato do mato e o cachorro do morro, Era uma
vez um tirano, O menino que espiava para dentro, dentro de dezenas de
outras obras, tendo recebido inclusive prêmios internacionais por sua obra.