terça-feira, 10 de março de 2015

COMECEI A PENSAR DIFERENTE A Bolsa Amarela de Lygia Bojunga Nunes)

Duas obras que, segundo meus critérios, são verdadeiras maravilhas da Literatura Infantil: A BOLSA AMARELA de Lygia Bojunga Nunes e BISA BIA,BISA BEL de Ana Maria Machado

A Bolsa Amarela, de Lygia Bojunga Nunes,  aborda problemas pré-adolescentes  comparando pessoas reais e situações verídicas. Uma criança sozinha em um apartamento certamente criará amigos imaginários, histórias com bichos. Mas guardar tudo isto em uma enorme bolsa amarela, como se fosse um refúgio contra a indiscrição dos adultos, é bem original, não acha?
 E que tal as histórias dos galos, Rei e Terrível, contrapondo uma visão anti-machista com uma relação de dependência, medo. E que maravilha de família, tão pra frente na Casa dos Consertos. Questionamentos sobre renovação em uma sociedade estratificada. Tudo isto neste pequeno texto:


Cap. 9 – Comecei a pensar diferente - A Casa dos Consertos – Páginas de 98 a 100.

 “Mas eu fiquei parada, querendo entender melhor a gente daquela casa. Apontei o homem:
-          Ele é teu pai?
-          É. – E aí ela apresentou os três: - Meu pai, minha mãe e meu avô.
Eles me deram um sorriso legal, e eu cochichei pra menina:
-          Por que é que ele tá cozinhando?
Ela me olhou espantada:
-          O quê?
Perguntei ainda mais baixo:
-          Por que é que tá cozinhando e tua mãe soldando panela?
-          Porque ela hoje já cozinhou bastante e ele já consertou uma porção de coisas; e eu também já estudei um bocado e meu avô soldou muita panela: tava na hora de trocar tudo.
-          Por que?
-          Pra ninguém achar que tá fazendo uma coisa demais. E pra ninguém achar também que está fazendo uma coisa menos legal do que o outro.
-          Teu avô está  estudando?
-          Tá.
-          Velho daquele jeito? (Era muito chato conversar com ela: só eu que cochichava; ela falava normal, todo o mundo ouvia.)
-          Ele só é velho por fora. O pensamento dele tá sempre novo.
-          Por que?
-          Porque ele tá sempre estudando. Que nem meu pai e minha mãe.
-          Eles também estudam?
-          Aqui em casa a gente não vai parar de estudar.
-          Toda a vida?
-          Tem sempre coisa nova pra aprender.
-          E quem é que resolve o que cada um estuda?
-          Como é?
-          Quem é que resolve as coisas? Quem é o chefe?
-          Chefe?
-          É, o chefe da casa. Quem é? Teu pai ou teu avô?
-          Mas pra que que precisa chefe?  (.................)
-          Não tem sempre uma porção de coisas pra resolver? Quem é que resolve?
-          Nós quatro. Pra isso todo dia tem hora de resolver coisa. Que nem ainda há pouco teve hora de brincar.(..............) Cada um dá uma idéia. E fica resolvido o que a maioria acha melhor.
-          Você também pode achar?
-          Claro! Eu também moro aqui, eu também estudo, eu também cozinho, eu também conserto. Aqui todo o mundo acha igual.
-          Mas pode ?

-          Por que é que não pode?” ......................” 

HUMOR NA LITERATURA INFANTIL: Significantes e significações: Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado.

O HUMOR NA LITERATURA INFANTIL

Ana Maria Machado é, sem dúvida das melhores autoras de Literatura infantil, e especialmente para pré-adolescentes. Com humor, com leveza, ensina; neste texto a exploração linguística evidencia os aspectos evolutivos da língua em seus significantes e significados   

LEIA O TEXTO SEGUINTE :

“ Toda essa história de móveis é muito engraçada. Bisa Bia não conhecia armário embutido, já imaginou? Levou um susto a primeira vez que me viu abrir um, pensou que era uma parede que se mexia, que nem uma passa secreta ou a caverna de Ali Babá. Disse que no tempo dela não tinha nada disso. Também não tinha televisão, nem sofá-cama, nem liquidificador, nem bancada de pia no banheiro, nem almofadão da gente sentar no chão, nem uma porção de coisas assim. Mas também, ela fala de uns outros móveis bem diferentes, de nomes esquisitos. Na sala tinha um tal de bufê ou etagér(............) No quarto, a cama dela tinha mosquiteiro. Eu pensei que era uma criação particular de mosquitos, estava achando uma idéia incrível Ter mosquito ensinado para zumbir a música que a gente quisesse e morder quem a gente não gostasse, mas aí ela explicou que era justamente o contrário ......  (........). Outra coisa que ela contou que tinha no quarto era penteadeira, cheia de vidros de perfume em cima, enfeites de louça ( vê que nome engraçado, chamava de bibelô e ela diz que eram tão bonitinhos que eu até pareço um bibelô). Penteadeira eu logo vi para que servia:
-          Ah, Bisa Bia, isso eu sei, é para olhar no espelho e se pentear, não é?
-          E também para se fazer o toucador...
-          O que? Toucador? Ajeitar a touca na cabeça?
Ela riu e explicou que não. Era se arrumar, se pintar, se enfeitar, ficar bonitinha, como a minha mãe se ajeita no espelho do banheiro. Aí Bisa Bia explicou que no tempo dela banheiro era muito diferente. A gente lavava o rosto no quarto mesmo, e sempre tinha uma mesinha ou um móvel com uma bacia e um jarro d’água, com uma toalha limpinha do lado.
-          E pra fazer xixi?
-          Tinha uma casinha lá fora...
-          E se a gente acordasse de noite com vontade?
-          Tinha um urinol... – ela explicava, sempre com paciência.
-          O que?
-          Um urinol, penico. Ficava embaixo da cama, ou guardado numa portinha especial do criado-mudo.
-          Criado-mudo? Você não disse outro dia que criada era empregada? Puxa, vocês gostavam mesmo de explorar os outros, hem, tratar todo mundo feito escravo... pra que é que precisava de um coitado de um mudo pra guarda penico?
-          Não, Isabel. Criado-mudo era uma espécie de mesinha do lado da cama, um armário pequeno...
-          Ah, mesinha de cabeceira... (........)
              ............No Domingo em que eu disse que ia comer um cachorro-quente e tomar uma vaca-preta, foi um deus-nos-acuda. Foi mesmo:
-          Deus nos acuda, minha filha! Isso lá é coisa que se coma? Coitadinho do cachorro...
O trabalho que deu para explicar, você nem sabe. Para começar, quando eu disse que era um lanche, levamos um tempão até entender que era o que ela chamava de merenda... Sanduíche era outra coisa que ela nem sabia o que era, mas deu para explicar que era salsicha com pão. Mas, vaca-preta? Coca-cola batida com sorvete? Quem disse que ela sabia o que era coca-cola? Ou qualquer refrigerante? Nada disso tinha no tempo dela. E depois, quando ela começou a me dizer o que costumava Ter na merenda ou na sobremesa da casa dela, foi a minha vez de arregalar os olhos e ficar horrorizada, enquanto ela suspirava de saudade:
-          Baba de moça, Isabel, uma delícia!
-          Ai, que nojo, Bisa, como é que você tinha coragem?   
Ela continuava:
-          Papo de anjo, também uma gostosura...
-          Uma maldade, isto sim. Logo de anjinho... Ainda se fosse de galinha...
Mas aí ela falou em pé-de-moleque e olho-de-sogra e suspiro, e eu fui descobrindo que tudo era nome de doce, já pensou? Ela achando que eu comia ensopadinho de cachorro e eu achando que ela lambia cuspe de gente, a tal baba de moça. A gente fala a mesma língua, mas tem horas que nem parece, porque tem umas coisas que mudaram muito, fica até difícil entender...
(MACHADO, Ana aria – Bisa,Bia, Bisa Bel , Rio de Janeiro, Ed. Salamandra, 11ª edição, 1985, p. 23 a 26)

Que tal? Gostou ? a autora soube fazer um texto humorístico,  em linguagem coloquial, bem ao alcance das crianças, e que leva também a diversas outras cogitações.


A obra acima citada, Bisa Bia, Bisa Bel, foi merecedora dos maiores prêmios brasileiros e Ana Maria Machado é autora infanto-juvenil brasileira, de obras como Bento-que-bento-é-o-frade, História meio ao contrário, Raul da Ferrugem Azul, O gato do mato e o cachorro do morro, Era uma vez um tirano, O menino que espiava para dentro, dentro de dezenas de outras obras, tendo recebido inclusive prêmios internacionais por sua obra.